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A Águia Romana e o Dragão Valiriano – Ascensão e Queda

”…Rapinadores do mundo, que depois de devastarem tudo e  não sobrar mais terras, buscam o mar também, ávidos por possuir, se o inimigo é rico, de dominar, se é pobre, nem o Oriente nem o Ocidente lhes saciaram; sós entre todos os mortais, cobiçam com igual amor as riquezas e a pobreza. Arrancar, trucidar, raptar chamam, com falso nome, império, e onde fazem o deserto, paz. ” – Tácito, Vida de Agrícola XXX.

The Course of Empire - Destruction, óleo sobre tela, 1836, Thomas Cole.

O Curso do Império – Destruição, Thomas Cole, óleo sobre tela, 1836.

  • Introdução

Se um especialista político moderno analisasse o cenário internacional do mundo mediterrâneo durante o século IV a.C., período em que Roma iniciou suas conquistas na Península Itálica, dificilmente ele a apontaria como a futura potência dominante, haviam candidatos mais fortes e prováveis – desde os prósperos, multiculturais e poderosos reinos helenísticos herdeiros das conquistas, fama e glória de Alexandre, o Grande até a talassocrática, sofisticada e oligárquica Cartago, que por sua vez era herdeira dos outrora hegemônicos navegadores e mercadores fenícios -, outros povos mais avançados, e apesar disso o que era uma improbabilidade ocorreu.

Trezentos anos depois, o historiador Tito Lívio dizia em sua magnum opus: ”Roma caput orbis terrarum est”. Roma é a capital de toda a terra. Palavras escritas durante o fim do primeiro século antes de nossa era, quando a República, o regime político que regera Roma por quase cinco séculos desde a expulsão dos reis Tarquínios e o fim da Monarquia, já havia se extinguido e o Império sido estabelecido por Otaviano Augusto.

E realmente os antigos romanos acreditavam nisso, tinham por firme crença que Roma era o centro do mundo civilizado – isto é, o mundo inteiro, já que o resto do mundo conhecido, mas fora das fronteiras romanas, era desconsiderado -, a refulgente luz que na era de Lívio e Augusto brilhava intensamente do Oceano Atlântico ao Mar Negro e o Cáucaso, desde as florestas da Germânia aos desertos do Norte da África, em um império com 2.750 mil km de extensão, com uma população estimada por estudiosos modernos entre 45 e 65 milhões de habitantes, mais de um terço da população global da época.

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Diante de tal crença na sua função civilizadora, de tal extensão de poder e influência política, econômica e cultural expressado por esses números, o surgimento das seguintes indagações é inevitável: como e porque os antigos romanos, outrora uma tribo de origens humildes e rústicas, acumularam tanto poder? Como e porque eles alcançaram o topo, chegaram ao posto de maior superpotência da história? Como surgiu a ideia de Roma como a luz do mundo, o centro de tudo o que existia, o ideal romano de cumprir um papel civilizador? E qual a relação de tudo isso com ”As Crônicas de Gelo e Fogo”? Existem referências a história da Roma Antiga na obra de fantasia de George R.R. Martin? Se sim, quais são? E a existência delas indicam algo, revelam o que?

Sim, a meu ver, existem referências a história da Roma Antiga em ASOIAF, inúmeras, algumas evidentes, outras nem tanto. Quanto as demais questões, as abordarei abaixo, tentando fazer um breve resumo da história da Roma Antiga, e posteriormente, estabelecendo conexões, analogias e paralelos entre a ”caput mundi” da Antiguidade e a obra de Martin, especificamente com a Cidade Franca de Valíria e a Casa Targaryen.

  • Breve História de Roma

‘Há aqui – em Roma – a moral de toda a história humana. O presente não é nada mais que uma repetição do passado; primeiro, a Liberdade e a Glória, e quando isso falha, a riqueza, o vício e a corrupção, e por fim, a barbárie. E a História, com todos os seus grossos volumes, não tem nada senão uma página – e aqui é onde ela melhor foi escrita, aqui onde a ostentosa Tirania acumulou todos os tesouros, todos os deleites que a vista, que o ouvido, o coração e a alma, podem apetecer, e os lábios solicitar – Mas chega de falar. Chegai-vos!” – A Peregrinação de Childe Harold, Lord Byron, Canto IV, Verso CVIII.  

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O Curso do Império – A Consumação, Thomas Cole, óleo sobre tela, 1836.

A partir de 2000 a.C., povos indo-europeus, aparentados com os arianos gregos, deslocaram-se para o centro e para o sul da Península Itálica. Esses povos, conhecidos como italiotas ou itálicos, formaram vários núcleos de povoação: latinos, samnitas, úmbrios, volscos e sabinos. Os latinos fixaram-se na planície do Lácio, às margens do rio Tibre, onde praticavam a agricultura e o pastoreio e viviam em comunidades primitivas.

Itália antiga (c. 600 - 300 a.C)

Itália antiga (c. 600 – 300 a.C).

 Na época da colonização latina, Roma, a futura ”Cidade das sete colinas”, era nada mais que um forte militar, construído para evitar a invasão de povos vizinhos. No século VIII a.C., enquanto o nível de vida das tribos itálicas era ainda muito rudimentar, os gregos que começaram a colonizar o sul – Magna Grécia – já apresentavam notável desenvolvimento econômico e cultural, e os etruscos, vindos provavelmente da Ásia Menor, que ocuparam a planície a oeste do Tibre, prosperavam e expandiam sua influência cultural, política e econômica por toda a região.

Competiu a eles a tarefa de transformar Roma de um modesto centro agropastoril em uma grande cidade-estado, cercada de sólidas muralhas, dando a ela uma nova estrutura, empregando novas técnicas, desconhecidas pelos latinos, desenvolvendo atividades tipicamente urbanas, com uma florescente atividade manufatureira e intenso comércio. Contudo, não é possível estabelecer com exatidão em que medida Roma sofreu a influência etrusca. Talvez tivesse sido uma dominação direta  ou então, exercida através de príncipes etruscos. O que se sabe na realidade é que este domínio foi da maior importância para o desenvolvimento da cidade, marcando profundamente suas instituições políticas, civis e religiosas, e também suas atividades artísticas e culturais.

 Até fins do séc. VI a.C., o regime político romano era uma monarquia eletiva e o poder real apresentava caráter divino. O rei acumulava a chefia militar, administrativa, jurídica e militar. A Monarquia foi dissolvida em 509 a.C., com a deposição e expulsão do etrusco Tarquínio, o Soberbo, o último de uma série de sete reis, e de sua família, em uma ação orquestrada pela aristocracia da cidade, os patrícios.  O governo de um único monarca sucumbiu ao poder dos patrícios, que passaram a governar através de dois principais magistrados eleitos anualmente, os Cônsules, e um corpo consultivo, o Senado.  

Longe de ter sido uma oligarquia corrupta, regida por uma aristocracia rica e decadente como muitos acreditam, a República era uma democracia imperfeita, mais ainda reconhecível.  Segundo o historiador grego Políbio – meados do século II a.C. -, a República Romana teria conseguido o equilíbrio ideal entre as instituições políticas monárquicas – as Magistraturas -, democráticas – os Comícios e as Assembleias – e aristocráticas – o Senado.

Nesse período, a cidade de Roma funcionava como uma espécie de ”empresa pública”, enquanto a pequena aristocracia, proprietária de terras, administrava o Estado. A frugalidade, a moralidade, a virtude cívica e o conservadorismo – Mos maiorum – de Cincinato e de Catão, o Censor eram os ideais da arte de governar. Os líderes dispunham-se, bem como seus cidadãos, a abandonar a vida pública e retornar ao campo, após ocupar o poder durante tempos de crise, dessa forma a rotatividade do poder era garantida e nenhum indivíduo poderia exercer autoridade absoluta sobre seus concidadãos.

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Cícero denuncia Catilina, afresco por Cesare Maccari, 1882-1888.

Roma começou sua história como República como pouco mais que uma cidade cercada por inimigos hostis, e pouco capaz de se defender contra o seu próprio rei exilado. Terminou como senhora incontestável do Mediterrâneo e de boa parte da Europa ocidental.

Isso se explica pelo fato de que devido aos romanos sempre estavam em constante estado de guerra, tendo que se defender de povos vizinhos rivais – etruscos, sabinos, samnitas e celtas –  lutando para sobreviver e defender a República, eles adquiriram um alto senso de excepcionalidade, de que eles eram distintos e especiais, e ao mesmo tempo desenvolveu neles um sentimento de bravura e coragem e um caráter militarista e belicoso, o que deu origem a maior força de guerra da história: as Legiões romanas.

Mas antes de marchar para conquistar o mundo conhecido, em 390 a.C. Roma foi sitiada durante sete meses por um exército de gauleses comandados por Brennus que acabou por invadi-la, destruindo-a parcialmente. Nada mais que um pequeno percalço no caminho, durante os próximos oitocentos anos a cidade não seria sitiada, invadida ou saqueada por um exército estrangeiro. Posteriormente ao saque dos gauleses, Roma enviaria suas legiões para fazer isso por toda a Itália e o Mediterrâneo.

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Brennus e sua parte dos despojos, óleo sobre tela, Paul Jamin, 1893.

O expansionismo na Itália inevitavelmente conduziu Roma ao confronto com outras potências em ascensão, lideradas por comandantes brilhantes que se provaram grandes adversários: primeiro, em 282 a.C. os gregos de Tarentum pediram ajuda a Pirro, rei do Épiro, na sua luta contra os romanos, mas mesmo as suas decisivas, porém custosas, vitórias – origem do termo ”vitória pírrica” – não detiveram o impulso conquistador romano. Dez anos depois Roma controlava toda a Itália e desejava expandir ainda mais as suas áreas de influência no Mediterrâneo, o que levou á deflagração de três guerras consecutivas pela hegemonia regional contra outra cidade-estado republicana em plena expansão: a rica, sofisticada e poderosa Cartago.

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Aníbal cruzando os Alpes, detalhe de um afresco c. 1510, Palazzo del Campidoglio, Musei Capitolini, Roma.

Cartago era uma talassocracia de origens fenícias, por isso os romanos chamavam seus habitantes de Punicus ou Poenicus, daí surgiu o termo Guerras Púnicas (264 a.C. – 146). Mesmo a genialidade de generais como Amílcar e seu célebre filho Aníbal Barca – que em uma proeza militar inigualável, transpôs os Pirineus, cruzou o Ródano, atravessou os Alpes, invadiu a Itália, esmagou os romanos em quatro grandes batalhas e ameaçou sitiar Roma durante dez anos com um exército formado por 35 mil homens e 37 elefantes de guerra – não foram o bastante para salvar Cartago, que após a derrota na Batalha de Zama em 202 a.C., teve que pagar grandes somas em indenização e entregar aos rivais todos os seus territórios, e em 146 a.C. foi completamente destruída após um cerco de três anos, com os romanos semeando seu terreno com sal para que nunca mais algo crescesse nos campos da antiga rival.

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Roma e Cartago – As Guerras Púnicas (264 – 201 a.C).

Após o sucesso nas Guerras Púnicas, Roma continuou sua expansão, e lançou-se em conflitos pelo domínio do Mediterrâneo oriental contra os herdeiros de Alexandre Magno, os diádocos, os reinos helenísticos – exs: a Macedônia da dinastia antigônida, o Império Selêucida e o Egito Ptolomaico – e pelo da Europa ocidental contra iberos, celtas e germânicos. Mas os efeitos, as consequências, de tantas conquistas não foram acompanhadas por mudanças políticas e sociais, o sistema republicano, ao mesmo tempo em que fomentou a expansão, não era capaz de administrar tantos territórios, ou seja, Roma era um império em extensão, mas continuava uma cidade-estado em essência…. mas isso não durou.

Logo estouraram guerras civis entre os Populares e os Optimates, os primeiros defendiam alterações radicais no governo e mais direitos para a plebe, os segundos advogavam a manutenção da República e da autoridade do Senado. Os líderes desses grupos eram generais, que com a expansão ultramarina, eram várias vezes reeleitos cônsules e recebiam grandes poderes para solucionar problemas no exterior. Estes generais dependiam da lealdade de suas tropas e sua substancial independência ameaçou a tradição republicana com seu governo corporativo e a rotatividade de indivíduos em altos cargos por curtos períodos. Com o tempo, os generais passaram a simplesmente ignorar a lei, que exigia a deposição de seus comandos ao retornarem ao solo italiano.

Alea iacta est

Alea iacta est

Houveram quatro grandes guerras civis (de 88 a.C. à 30 a.C.), e o ápice delas foi a travessia do rio Rubicão – fronteira entre o território de Roma e as regiões provinciais – por um desses generais: Caio Júlio César em 49 a.C., após oito anos lutando em campanhas pela conquista da Gália. César foi a ponte entre a República e o Império, era um patrício, mas defendia os plebeus, era o líder dos Populares, mas ao mesmo tempo cobiçava a posse de poderes absolutos – tudo o que, desde os primórdios, os romanos odiavam – e se dizia descender da deusa Vênus. Ele lutou contra o seu velho amigo e companheiro de Triunvirato, Cneu Pompeu Magno, um plebeu rico, líder dos Optimates, vencendo a ele e seus aliados do Senado, e sendo recebido com um Triunfo – a maior e mais tradicional celebração militar aos generais romanos vitoriosos – na capital três anos após a travessia do Rubicão.

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O Triunfo de César, detalhe, c. 1484-1492, de Andrea Mantegna.

Em 44 a.C., César foi nomeado Ditador perpétuo – dictator in perpetuum – pelo Senado, o que para grupos da aristocracia da época fazia parte de honras e títulos que objetivavam transforma-lo em rei e divinizá-lo. Os Optimates se reorganizaram, e liderados por  Gaius Cassius Longinus e Marcus Junius Brutus, outrora amigo íntimo e aliado de César, assassinaram-no em pleno Senado Romano nos Idos de Março, e passaram a ser conhecidos como Liberators – libertadores.

A Morte de César, c. 1859-1867, de Jean-Léon Gérôme.

A Morte de César, c. 1859-1867, de Jean-Léon Gérôme.

O filho adotivo e herdeiro de César, seu jovem sobrinho-neto Caio Otávio – que a partir desse momento mudou o nome para Otaviano, pois de acordo com o costume romano, o sufixo -iano indicava a adoção -, seu primo e mais popular comandado, o general Marco Antônio, e seu comandante da cavalaria, Marco Emílio Lépido, uniram forças para enfrentar Brutus e Cassius, o que culminou na Batalha de Filipos em 42 a.C., onde as legiões dos Liberators foram derrotadas e seus líderes se mataram.

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A República Romana – As Guerras Civis (49-30 a.C).

Após Filipos, Otaviano, Antônio e Lépido dividiram o governo da República, o primeiro ficou com Roma e o Ocidente, o segundo com a Grécia e as províncias orientais e o terceiro com as províncias da África e da Hispânia, formando o Segundo Triunvirato, que foi consolidado em 40 a.C. pelo Tratado de Brundisium e com o casamento de Antônio e a irmã de Otaviano, Otávia.

 Mas essa aliança era instável e pouco durou, em 36 a.C. Otaviano afastou Lépido do poder e o exilou, adquirindo mais recursos e territórios. Dois anos depois, Marco Antônio violou o acordo, rejeitando sua esposa Otávia e se casando com sua amante, a faraó do Egito Cleópatra VII, e alterando o seu testamento transferindo o controle dos territórios romanos no Oriente para Cleópatra e seus filhos com a faraó –  as Doações de Alexandria – , o que ocasionou a última das guerras civis da República.

A guerra  foi decidida com a Batalha de Actium em 2 de setembro de 31 a.C., onde a frota de Otaviano comandada por seu maior general, Marco Vipsânio Agripa, venceu as forças combinadas de Antônio e Cleópatra, que no ano seguinte, com a iminente chegada de Otaviano a Alexandria, suicidaram-se.

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Pintura barroca representando a Batalha de Actium, por Lorenzo A. Castro, 1672, Museu Marítimo de Greenwich, Reino Unido.

A transição da República para o Império estava completa. Otaviano se tornou o senhor inconteste de todo o mundo romano, e em 27 a.C. o Senado lhe conferiu os títulos de princeps – primeiro cidadão -, imperator – comandante do exército -, pontifex maximus – sumo pontífice -, princepes senatus – chefe do Senado –  e de Augustus – elevado, majestoso, venerável  – , o que o tornava superior aos outros homens, ao mesmo tempo em que lhe eram conferidas prerrogativas religiosas, dando margem a sua deificação após a morte.

A República realizou as conquistas territoriais, coube a Augusto a imensa tarefa de consolida-las, organizar, administrar, criar uma estrutura sólida capaz de governar tantos povos e culturas diferentes espalhados em um vasto Império, o que cumpriu de forma magistral. Ele conseguiu combinar as instituições republicanas com o poder militar personalizado, introduziu reformas de longo alcance – nos impostos, na família e vida social -, acabou com a corrupção local e na administração provincial.

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Augusto de Prima Porta

Enquanto concentrava poder, Augusto permitiu que o Senado, os velhos magistrados e a classe dos negociantes – Ordem Equestre – partilhassem com ele a administração do Império. Assim, na teoria, ”a República foi restaurada” e o governo permaneceu em mãos civis. À custa de perder algumas das liberdades individuais, um governo estável deu  à maior parte do mundo ocidental civilizado cerca de dois séculos e meio de paz e prosperidade, com municipalidades por todas as províncias gozando de considerável independência e com a cultura predominantemente latina do Ocidente complementando o helenismo do Oriente.

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Império Romano – Pax Romana (27 a.C. – 211d.C.).

A dinastia inaugurada por Otaviano Augusto, a Júlio-Claudiana, durou apenas cinquenta e quatro anos após a sua morte, porém, o sistema e o ideal imperial, com todas suas instituições, que ele estabeleceu foi mais perene, sobrevivendo até fins do século IV no Ocidente e até meados do séc. XV no Oriente, –  e de certa, forma, até os dias atuais, como explicarei mais adiante.

A Pax Romana por ele instituída se estendeu de seu reinado até a morte de Marco Aurélio, ”o imperador filósofo”, em 180 de nossa era – ou segundo alguns, até a morte de Septímio Severo em 211 – a despeito de revoltas, deposições e guerras civis, que pouco abalaram o sistema.

O Império atingiu a sua extensão máxima, chegando ao zênite de seu poder e influência, durante o reinado de Trajano, quando se estendia das fronteiras do norte da atual Inglaterra no oeste aos desertos da Mesopotâmia e o Golfo Pérsico no leste, dos rios Reno e Danúbio no norte até à África Mediterrânea no sul. O seu sucessor, Adriano, decidiu acabar com o período das conquistas e recuperar a política de Augusto de consolidar o domínio e controle sobre os territórios.

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Expansão do Império Romano (201 a.C. – 117 d.C.).

O Império foi mantido por uma comunicação confiável  e a paz interna foi garantida pelas legiões. As frotas mantiveram os mares a salvo para a navegação e uma rede de estradas romanas, construídas para possibilitar  a mobilidade das tropas, facilitaram o comércio, as viagens particulares e o sistema postal imperial. O desenvolvimento de um sistema legal único e a utilização de uma língua comum – latim no oeste e grego no leste – ajudaram a manter a unidade. As cidades romanas floresceram por todo o império, com a ajuda de um eficiente sistema de águas e de drenos. A influência e o comércio romanos difundiram-se até a Índia, Rússia, Sudeste Asiático e, através da Rota da Seda, até a China da dinastia Han.

“Roma é a obra mais bela e útil do destino e todo os homens devem a ela se submeter. A História é a mestra da vida, levando os homens a compreenderem o seu destino. Roma é o centro do mundo, e a imposição de seu destino é o destino histórico mundial. ” – Políbio em ”Histórias”.  

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Gravura de Luigi Rossini.

O sucesso do Império foi também o responsável por seu declínio e queda: sua grande extensão contribuiu para seu colapso, exacerbado por lutas pelo poder e pela invasão de tribos migratórias germânicas e das estepes da Eurásia, ansiosas por conquistar terras.

Para facilitar o governo e a administração, Diocleciano instituiu a Tetrarquia em 293, o filho e herdeiro de um dos tetrarcas, Constantino, reunificou o Império em 324, mas transferiu a sua capital para a cidade grega de Bizâncio, que reconstruiu e rebatizou como Constantinopla, o que fez com que o centro do poder se deslocasse para o Oriente, o que fazia sentido, já que antes a capital situava-se na extremidade ocidental de um império no qual a verdadeira riqueza e o equilíbrio populacional se encontravam na extremidade oposta do Mediterrâneo.

Um dos sucessores de Constantino, Teodósio I, ainda sofrendo com os efeitos de um império em crise crescente vasto demais, decidiu dividi-lo após sua morte em 395 entre Ocidente e Oriente para seus filhos Honório e Árcadio, respectivamente.

Roma foi saqueada pelos visigodos em 410 e novamente pelos vândalos em 455, e em 476, Rômulo Augusto, o último imperador do Império do Ocidente, foi deposto pelos hérulos comandados por Odoacro. Mas no leste, o Império Romano Oriental sobreviveria por mais quase mil anos, e mesmo no ocidente tanto o sistema imperial quanto os ideias, as tradições e a cultura dos romanos nunca se extinguiram por completo, sobreviveram e perduram até hoje, como parte inerente do mundo ocidental.

  • Roma Antiga em ASOIAF: relações com Valíria e os Targaryen

”Valíria no auge de seu poder não era nem um reino nem um império… ou, pelo menos, não tinha um rei nem um imperador. Era mais parecida com a antiga República Romana… Em teoria, seu governo incluía todos os “proprietários livres”, ou seja os proprietários nascidos livres. Claro que, na prática, as famílias ricas, bem-nascidas e poderosas na feitiçaria passaram a dominar. ” –  George R.R. Martin em The Citadel, So Spake Martin.

Valyria

Embora atualmente dispomos de poucas informações históricas precisas e detalhadas sobre Valíria – e por extensão, de Essos em geral -, mesmo com o pouco que sabemos, podemos afirmar que a Cidade Franca de Valíria era uma Roma Antiga com porções de magia. Muitos dos aspectos e características da civilização valiriana claramente evocam Roma, tanto em seu período republicano quanto no imperial, bem como muito da história de seus futuros herdeiros, a Casa Targaryen, possuem várias conexões com Roma. A seguir tentarei traçar algumas analogias e paralelos entre elas, observando que, devido a falta – até o momento – de detalhes sobre a história de Valíria, permiti-me teorizar sobre a mesma.

  • Dos rudimentares primórdios à ascensão desenfreada e a hegemonia 

Roma e Valíria tiveram origens que contrastam com seus futuros imperiais, a primeira não passava de uma simples comunidade agropastoril quando do início do domínio dos etruscos sobre ela, a segunda era uma sociedade pacífica formada por pastores de ovelhas até o descobrimento de esconderijos e ovos de dragões em Quatorze Chamas, um anel de vulcões localizado na Península Valiriana, cerca de 5 mil anos antes da Conquista. Tanto o domínio etrusco quanto a descoberta e posterior domação, criação e treinamento de dragões transformaram para sempre as duas civilizações.

Mas o expansionismo de ambas as cidades não surgiu do nada, anteriormente afirmei que a exposição a ataques e as constantes lutas de Roma contra seus vizinhos rivais na aurora da República criaram um senso de excepcionalidade e um caráter militarista e belicoso nos antigos romanos, o mesmo pode ter ocorrido com os valirianos devido aos choques militares com o Império Ghiscari. E ao que tudo indica, os agressores foram os ghiscari, que desejavam possuir os recém descobertos dragões, não os valirianos:

”Cinco vezes a Velha Ghis havia competido com Valíria quando o mundo era jovem, e cinco vezes havia caído, em derrota desoladora. Pois a Cidade Franca possuía dragões, e o Império não. ” – A Tormenta de Espadas,  Daenerys III, Capítulo 27.

”Nossas histórias falam de senhores de dragões da horrível Valíria, e da devastação que causaram sobre o povo da Antiga Ghis. ” –  A Dança dos Dragões,  Barristan IV, Capítulo 70. 

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As sucessivas guerras de Valíria contra Ghis ao mesmo tempo em que são análogas as Guerras Púnicas, são uma inversão delas também, pois enquanto Ghis foi o primeiro grande obstáculo a hegemonia valiriana em Essos, Cartago foi a última grande resistência contra a supremacia romana no Mediterrâneo Ocidental, que a partir da derrota final cartaginesa, passou a ser chamado de Mare Nostrum pelos romanos.

E tanto Cartago quanto Ghis eram civilizações mais antigas que as recém emergentes Roma e Valíria, a primeira tinha origens como colônia fenícia da cidade-estado de Tiro – por isso o nome Qart-Hadast, que significa ”Cidade Nova” – no séc. IX, a segunda era um império antigo que dominava grande parte de Essos enquanto os valirianos eram humildes pastores de ovelhas, como bem nos lembram os descendentes de Velha Ghis:

‘A Antiga Ghis dominava um império quando os valirianos ainda andavam fodendo ovelhas. ” – Kraznys mo Nakloz, A Tormenta de Espadas, Daenerys II, Capítulo 23.

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Dido constrói Cartago ou A Ascensão do Império Cartaginês, óleo sobre tela, William Turner, 1815.

A Velha Ghis teve um destino extremamente similar ao de Cartago, durante a última das guerras contra seus rivais, os valirianos derrubaram suas muralhas, transformaram as ruas e edifícios em pó e cinzas com o fogo de dragão, e semearam os campos da cidade com sal, crânios e enxofre, porém as três colônias ghiscari – Astapor, Yunkai e Meereen – e o enraizado sistema escravista permaneceram intocados e posteriormente prosperaram e se consolidaram, provas do inclusivismo e do poder de adaptação valiriano

Não sabemos como e de onde surgiu a ideia dos valirianos de organizarem seu sistema político como uma república e sempre rejeitarem instituições monárquicas – rejeição que eles legaram as suas colônicas, as futuras Nove Cidades Livres – , mas não é absurdo teorizar que Valíria devia lealdade aos ghiscari – tal como os Romanos da Monarquia deviam aos etruscos -, sendo possivelmente essa a origem do conflito após a descoberta dos dragões, com os valirianos não entregando aos seus ”senhores” esses seres monstruosos e mágicos.

Do sexto milênio – época dos conflitos entre Valíria e Ghis – até 700 anos antes da Conquista, quando Valíria entrou em confronto com os Roinares, há uma grande lacuna na história, sem informação alguma. A expansão valiriana para a costa oeste de Essos os levou ao conflito com a civilização roinar, onde um grande líder militar, que considero análogo a Aníbal Barca, tentou deter os valirianos: Príncipe Garin, o Grande, de Chroyane. 

No quarto livro, durante o primeiro POV de Arianne Martell, ele é chamado de ”a maravilha de Roine” e é dito que fez Valíria tremer, porém, assim como ocorreu com Aníbal, os notáveis e brilhantes feitos e esforços de Garin sucumbiram ante a supremacia militar valiriana, e ele, juntamente com seus 250 mil soldados, pereceram no campo de batalha.

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Aníbal contando os anéis dos cavaleiros romanos caídos na Batalha de Cannae – (216 a.C.). Mármore de 1704 esculpido por Sébastien Slodtz, atualmente exposto no Museu do Louvre.

A inversão histórica se faz presente novamente aqui. Tanto Aníbal quanto Garin eram admirados e temidos por seus próprios adversários – como as lendas em torno da Maldição de Garin e do Senhor da Mortalha (Shrouded Lord) apresentadas nos capítulos de Tyrion no quinto livro evidenciam -. A travessia dos Alpes e a invasão da Itália por Aníbal ficaram para sempre na memória dos antigos romanos, sendo que sempre que algum desastre ocorria, era costume dizer: ”Hannibal ad portas!” – ”Aníbal está as portas”! – Mas enquanto este pode ser considerado um dos primeiros – ao lado de Pirro do Épiro – grandes adversários militares de Roma, o segundo representou a última resistência organizada visando deter o expansionismo valiriano.

Os roinares, em alguns aspectos, se assemelham aos antigos egípcios, sendo que o Roine, o maior de todos os rios de Essos, considerado sagrado e adorado como a Mãe Roine, é análogo ao rio Nilo, também divinizado pelos egípcios, mas sob a forma masculina – Hapi -, e a sua sociedade onde as mulheres possuem direitos e exercem papéis papéis político-sociais equivalentes aos homens, pode ser comparada a sociedade egípcia: se as mulheres da família real podiam ser faraós, as mulheres roinares e dornesas também podem ser governantes.

Assim como Faraó era um título exclusivo para os soberanos do Egito, Príncipe é um título fora do comum em Westeros e Essos, apenas usado pelos governantes da civilização roinar no passado e atualmente pelos de Dorne – além dos simbólicos governantes de Pentos -. Tanto os roinares como os antigos egípcios tiveram mulheres como seus últimos  governantes independentes: a rainha guerreira Nymeria e a mais famosa faraó, Cleópatra VII.

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Princesa Nymeria de Ny Sar.

O que constitui uma inversão irônica, já que para assegurar o Egito como reino independente, Cleópatra se aliou politicamente e se envolveu amorosamente com dois grandes líderes romanos, primeiramente com Caio Júlio César e por fim com Marco Antônio, mas fracassou, ao passo que Nymeria, na migração a Dorne, casou-se com Mors Martell, forjando uma bem sucedida aliança e promovendo a fusão da linhagem real roinar com os nativos Martell, enquanto no caso de Cleópatra e Marco Antônio, este foi acusado de abandonar a cultura e a identidade romanas e se tornar um egípcio, o que foi um dos fatores que o conduziu ao fim de seu acordo com Otaviano e a posterior guerra entre eles.

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Cleópatra, óleo sobre tela, 1888, John William Waterhouse.

Outro caso de inversão irônica aqui é que enquanto a escrita egípcia era hieroglífica e a última dinastia faraônica, a Ptolomaica (305 a.C. – 30 a.C.), praticava o incesto visando manter a linhagem real pura, no universo de Martin são os análogos dos romanos, os conquistadores do Antigo Egito, os valirianos e os Targaryen, que utilizavam uma forma de escrita hieroglífica e praticavam o incesto.

Também podemos ver na bem sucedida fuga de Essos e a migração roinar para o ocidente em direção a Dorne, liderada por Nymeria, como uma inversão do que se deu com Cleópatra, que após a decisiva derrota naval em Actium, e seu retorno a Alexandria, pretendia fugir para a Índia com seus filhos, o que sobrara de sua frota e os inúmeros tesouros da cidade, ou mesmo como um eco a teoria de que antes das Guerras Púnicas navegadores cartagineses chegaram a um novo e desconhecido continente ao oeste.

Após a vitória sobre os roinares, Valíria dominava a maior parte de Essos, e aproximadamente dois séculos antes da Perdição, estendeu seu Domínio para a a costa leste de Westeros, colonizando uma pequena ilha no Mar Estreito, onde construíram um castelo, e a nomearam Pedra do Dragão, o posto mais ocidental do Domínio, que passou a ser controlado por uma das menos importantes e poderosas das 40 famílias dominantes de Valíria, a Casa Targaryen. Era o auge da civilização valiriana – período de seis séculos que podemos chamar de Pax Valiriana -, mas logo sucedeu a sua queda.

  • A Perdição de Valíria e a Queda de Roma

”Uma grande civilização não é conquistada de fora até que tenha destruído a si mesma por dentro. A causa essencial do declínio de Roma estava em seu povo, sua moral, sua luta de classes, seu comércio deficiente, seu despotismo burocrático, seus impostos sufocantes, suas guerras de consumo. ” – Will Durant, César e Cristo, A História da Civilização, Volume III.  

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O Curso do Império – Desolação, Thomas Cole, óleo sobre tela, 1836.

O declínio e o colapso do Império Romano foi um processo lento que durou mais de três séculos – reinos e nações existiram por menos tempo -, causado por inúmeras determinantes, que vão desde o fim do expansionismo territorial e a consequente crise do escravismo até a falência da estrutura militar e o abandono da rígida moral e cívica romanas em favor da valorização do luxo e da opulência decorrente das interações com o Oriente e etc, ao passo que a destruição da civilização valiriana foi rápida, abrupta e devastadora. Ela ocorreu em escala monumental, assim como a de Roma, mas enquanto a queda desta foi determinada tanto por fatores externos quanto internos – políticos, militares, econômicos, sociais e  culturais -, Valíria foi literalmente varrida do mapa devido a um cataclismo de grandes proporções, avassalador, relembrado até hoje tanto em Essos quanto em Westeros.

O que nos remete aos grandes símbolos de Roma e de  Valíria – ambas associadas direta ou indiretamente a cor vermelha, a cor do poder, da soberania, a cor do deus Júpiter para os romanos – :  enquanto a queda do voo da ágil e leve Águia romana foi  gradativa, o queda do voo do monstruoso e pesado Dragão valiriano foi imediata, terrível e impactante. No quinto livro, Tyrion dá uma amostra do que foi a Perdição:

”Estava escrito que, no dia da Perdição, cada colina em um raio de oitocentos quilômetros tinha se partido, enchendo o ar com cinzas, fumaça e fogo, chamas tão quentes e famintas que até os dragões no céu foram engolidos e consumidos. Grandes fendas se abriram na terra, engolindo palácios, templos, cidades inteiras. Lagos ferveram e se tornaram ácidos, montanhas explodiram rocha derretida a trezentos metros de altura, nuvens vermelhas  fizeram chover vidro de dragão e o sangue negro dos demônios, e, no norte, o solo se fragmentou e desabou, e o mar feroz invadiu tudo. A cidade mais orgulhosa do mundo se foi em um instante, seu fabuloso império desapareceu em um dia, e as Terras do Longo Verão queimaram, afogaram e ruíram. Um império construído com sangue e fogo. Os valirianos colheram a semente que plantaram. ” – A Dança dos Dragões,  Tyrion VIII, Capítulo 33.

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Apesar de a Perdição evocar a maior catástrofe natural da história da Roma Antiga, a erupção do Vesúvio em 79, o seu nível de destruição foi muito maior, se assemelhando mais a chamada Erupção minoica, que extingui os minoicos ou minoanos da ilha de Creta, a primeira civilização europeia.

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A Destruição de Pompéia e Herculano, John Martin, c. 1821.

É significativo apontar o fato de que nada – exceto as lendárias estradas – sobreviveu como memória material de Valíria, nenhum templo, fórum, ponte, aqueduto, terma,  biblioteca, Arco do triunfo, muralha, palácio e etc, ao passo que de Roma temos tudo isso, além das fontes históricas documentadas pelos próprios romanos – que como os antigos egípcios, adoravam registrar a própria história -, o que de Valíria também nada restou, tornando difícil o conhecimento exato de sua história, o que é inverso ao que se dá com Roma.

O laureado historiador australiano Geoffrey Blainey reflete sobre a civilização romana e as várias razões de sua queda em ”Uma Breve História do Mundo”:

”Até que ponto ia o poder da civilização romana? Roma herdara muito dos gregos, mas não possuía tanta criatividade quanto a Grécia. Os romanos estavam mais preparados para a guerra do que os gregos e tiveram mais sucesso ao impor o primeiro componente fundamental de uma civilização: lei e ordem. Roma criou uma vasta zona de livre comércio, um mercado comum, e por um longo período manteve suas fronteiras em relativa paz, pelo menos para os padrões da história humana. Os romanos moldaram o que ainda é chamado de Direito Romano, o sistema legal adotado pela maioria dos povos da Europa e da América do Sul. Havia entre eles, provavelmente, os melhores engenheiros do mundo até aquela época, responsáveis pela construção de aquedutos impressionantes, que forneciam às cidades um abastecimento seguro, e de estradas que duraram séculos.

Saque de Roma pelos visigodos em 24 de agosto de 410, por Joseph-Noël Sylvestre

Saque de Roma pelos visigodos em 24 de agosto de 410, por Joseph-Noël Sylvestre.

Por que o Império Romano veio a decair? Essa é uma das questões fascinantes da história e admite uma combinação de respostas que vão do envenenamento por chumbo na capital e exaustão do solo no interior até a ascensão do cristianismo. Os hunos e outros invasores tiveram certo peso, mas seus ataques foram bem-sucedidas em parte pela fragilidade da resistência. As causas da decadência foram internas. É quase certo que a questão mais importante – e de mais difícil compreensão – seja: por que que o império durou tanto tempo? Ascensão e a decadência constituem o padrão normal das instituições humanas; é mais fácil subir do que permanecer no topo. ” 

Essa reflexão de Blainey também é adequada para a aplicarmos a Valíria: por que o Domínio durou tanto tempo – aproximadamente 4900 anos – ? Valíria e Roma, não obstante a crueldade exibida em vários momentos de suas histórias, possuíam características inclusivas, agregadoras e unificadoras, ambas as cidades, em suas marchas em busca de conquistas, adquiriram, absorveram e adaptaram a sua forma tradições, conceitos e valores alheios, mesmo e principalmente de povos derrotados. Mais do que impérios desumanos e famintos por recursos e  terras, Roma e Valíria eram ideias, ideais que se mantiveram vivas após suas quedas e subsistem até hoje, nos dois mundos.

  • Símbolos e Lemas

A Águia era era o animal sagrado de Júpiter, deus supremo do panteão romano, e o símbolo-mor das Legiões, o seu estandarte – chamado de Aquila – imprescindível que dava moral aos legionários, incentiva o seu espírito de luta e bravura e os lembrava constantemente de seu papel e ideal civilizador, pois se a águia era o maior dos animais, voando acima de tudo e de todos e os observando, os romanos eram os senhores do mundo conhecido, a frente de todas as demais civilizações.

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Para os valirianos e o seus herdeiros Targaryens, o Dragão era mais que um símbolo moral e político, era uma arma de destruição em massa empregada em suas guerras, um símbolo funcional.

Enquanto a Águia representava o poder e a força de Roma, a sua superioridade cultural, política e militar sobre os demais povos, o Dragão também o fazia, só que de forma mais direta e violenta.

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Centurião supervisionando a construção da Muralha de Adriano, óleo sobre tela, William Bell Scott, 1857.

Se o lema de Roma era ”Senatus Populusque Romanus” – ”O Senado e o Povo de Roma” -, o dos herdeiros políticos de Valíria é ”Fogo e Sangue”, o primeiro lema reflete o caráter nacionalista, conservador e republicano da Roma Antiga, os tempos em que Roma era uma República democrática onde a estabilidade política e a rotatividade do poder eram garantidas, já o lema Targaryen possui uma alta conotação belicista, militarista e imperialista, evocando suas origens valirianas e o legado político que eles continuaram em Westeros.

Aliás, o próprio nome Targaryen é uma clara evocação dos Tarquínios, a dinastia de reis etruscos que reinou sobre Roma em seus primórdios, antes da República.

  • A Casa Targaryen e o mito da Fundação de Roma 

Após a ascensão de Augusto ao poder, ele encomendou a poetas como Virgílio e historiadores como Tito Lívio a escrita da versão oficial da história de Roma, uma versão que mostrasse que desde o princípio Roma estava predestinada as conquistas e a glória. Virgílio, inspirado pelos épicos poemas homéricos, escreveu a epopeia Eneida, onde constrói conexões entre Roma e a mítica Tróia.

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Eneas foge de Tróia incendida, Federico Barocci, 1598.

Segundo essa versão, que se tornou a tradicional, Roma foi fundada por Rómulo, filho do deus da guerra Marte e da vestal Reia Sílvia e um descendente direto de Eneas – filho de Anquises e da deusa Vênus -, um príncipe troiano que fugiu da destruição de sua cidade junto com alguns compatriotas e sua família. Uma situação análoga ocorre com os ”párias de Valíria”, não com Valíria propriamente dita: a Casa Targaryen.

O ancestral da Casa Targaryen, Aenar, o Exilado é claramente inspirado em Eneas – Aenar é um variante de Eneas, nome que no original grego significa ”louvado, glorioso, famoso” –  mas há outra inversão: o auto-exílio de Aenar ocorre pouco antes – doze anos – da extinção da maior civilização da história do mundo de ”Gelo e Fogo”, ao passo que, de acordo com o mito, a fuga de Eneas em meio as chamas e ruínas de Tróia marca o início da civilização romana.

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Eneas derrota Turno, Luca Giordano, 1634-1705.

A filha de Aenar, Daenys, a Sonhadora, é a análoga invertida  da princesa Cassandra, prima de Eneas e sacerdotisa de Apolo, filha do rei Príamo e de Hécuba, que como a Targaryen, tinha o dom dos sonhos, premonições e visões proféticas. Ela, como Daenys, predisse a catastrófica extinção de seu povo, mas ao contrário de Cassandra, Daenys teve um destino feliz, se exilou com seu pai em Pedra do Dragão e lá viveu e se casou com seu irmão Gaemon, o Glorioso, enquanto que Cassandra foi capturada e estuprada por soldados gregos após a queda de Tróia, transformada em escrava e levada cativa para a Grécia.

Explorando a analogia, Virgílio queria mostrar, com seu poema épico, que Roma era a herdeira de uma grande civilização perdida, e que por isso, desde seus primórdios, a conquista do mundo mediterrâneo e a glória do Império estavam predeterminados.Talvez os Targaryen também cressem em algo semelhante, sendo a única das 40 famílias nobres dos ”senhores do dragão” sobreviventes  – as Casas Velaryon e Celtigar provavelmente eram, para usar um termo romano, clientes dos Senhores de Pedra do Dragão, devendo-lhes lealdade -, porém não os únicos que alegavam a posse da herança imperial de Valíria – como vimos anteriormente na análise sobre as Cidades Livres -.  Os Targaryen devem ter se sentido como que predestinados a algo maior no século que passaram em Pedra do Dragão antes de empreenderem a Conquista.

  • Aegon, o Conquistador e Otaviano Augusto: Patres Patriae

”Ele aprendeu com Alexandre, o Grande, que depois de ter completado todas as suas conquistas com trinta e dois anos de idade, fracassou totalmente em saber o que fazer durante o resto de sua vida, pelo que Augusto se espantou por Alexandre não ter considerado como uma tarefa maior pôr em ordem o império que ele havia ganhado do que apenas conquistá-lo. ” Plutarco em ”Obras Morais e de Costumes”

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Se Augusto era o legítimo herdeiro de Caio Júlio César, personificou os ideais  imperiais cesarianos e fundou o Império Romano, Aegon I Targaryen foi o clímax da herança valiriana legada a Casa Targaryen e o unificador de Westeros. Se o primeiro teve que lutar em guerras civis contra uma série de pretendentes a senhor do mundo romano para se tornar o primeiro Imperador,  o segundo invadiu um continente estrangeiro divido em sete nações independentes, governadas por sete longevas dinastias, conquistou seis delas, extingui três das sete Casas dominantes, elevou outras três ao poder, e se instituiu como primeiro rei de Westeros unificado, sendo nesse período que o termo ”Sete Reinos” foi cunhado.

”Aegon esteve um dia onde estou agora, olhando para esta mesa. Pensa que lhe chamaríamos hoje Aegon, o Conquistador, se não tivesse tido dragões? ” – Stannis à Davos, A Tormenta de Espadas,  Davos V, Capítulo 54.

”Aegon, o Conquistador, trouxe fogo e sangue a Westeros, mas depois deu-lhe paz, prosperidade e justiça. ” – A Tormenta de Espadas, Daenerys VI, Capítulo 71.

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Aegon I e Balerion, a ambição sem limites de um e o poder de fogo do outro unificaram seis dos Sete Reinos.

Apesar do cognome de Aegon I, a meu ver, o seu perfil, como o de Augusto, era mais a de um eficaz  planejador, organizador e administrador do que o de um grande general ou comandante, por isso, tanto Aegon quanto Augusto compensavam essa debilidade com seus melhores amigos e maiores apoiadores e auxiliares: Orys Baratheon e Marco Vipsânio Agripa, ambos generais e chefes militares de reconhecida capacidade e brilhantismo, ambos de origens não tão notáveis: se Orys era o irmão bastardo de Aegon, Agripa era oriundo de uma família plebeia de origens camponesas.

Tanto as maiores vitórias nas guerras de Aegon quanto as de Augusto tiveram participação direta e decisiva de Orys e Agripa: a conquista do Reino das Terras da Tempestade por parte do primeiro, as vitórias nas batalhas de Filipos e Actium, no caso do segundo. Enquanto Orys foi a primeira Mão do Rei da história, Agripa era o ministro da defesa de Augusto, foi várias vezes eleito cônsul e chegou a se casar com a filha do imperador, fazendo parte da linha de sucessão.

Busto de Marcus Vipsanius Agrippa do Fórum de Gabii , atualmente no Louvre, Paris.

Busto de Marcus Vipsanius Agrippa do Fórum de Gabii , atualmente no Louvre, Paris.

Se Aegon partilhava o governo com suas irmãs-esposas, Rhaenys e Visenya, Augusto era muito influenciado por sua terceira esposa, Livia Drusilla, que o auxiliava nos negócios de estado.  Augusto e Aegon são similares também em suas personalidades, com ambos sendo descritos como solitários, austeros e moderados – de acordo com Suetônio e um excerto de The World of Ice and Fire -. Se Aegon era bígamo, Augusto casou-se três vezes.

Ambos transformaram um continente/império fragmentado, desunido, sem uma estrutura política unificadora, em um reino/império unificado, estável e próspero, com um sistema político agregador, sólido e duradouro – a despeito das conturbações inerentes a história -. Ambos criaram e instituíram novos títulos e instituições, ex: Aegon I estabeleceu a famosa e honrada Guarda Real, Augusto estabeleceu a também célebre Guarda Pretoriana.

Busto de Augusto, Musei Capitolini, Roma.

Não à toa ambos são símbolos, ícones, se Aegon, o Conquistador sempre é uma lembrança constante em Westeros, para os romanos Augusto era o modelo a ser seguido pelos imperadores seguintes, sendo que sempre que um imperador era coroado o Senado lhe dizia as palavras: ”Felicior Augusto, melior Traiano”. 

  • AC – After the Conquest, AUC – Ab Urbe Condita

”Os meistres da Cidadela que guardam as histórias de Westeros tem usado a Conquista de Aegon como a sua pedra de toque nos últimos trezentos anos. Nascimentos, mortes, batalhas e outros eventos são datados ou DC (Depois da Conquista) ou AC (Antes da Conquista). ” 

Tanto o calendário romano quanto o westerosi são marcados a partir de grandes acontecimentos políticos, o primeiro a fundação lendária de Roma por Rômulo em 753 a.C. – ab urbe condita, desde a fundação da cidade –  e o segundo é contado a partir do ”fim” da Conquista de Aegon ou Guerra da Conquista, assinalado com a coroação de Aegon I pelo Alto Septão no Septo Estrelado em Vilavelha, dois anos após desembarque de suas forças na Baía da Água Negra.

  • O Império das Ideias – Legado romano e valiriano

”Ao contrário da Grécia clássica, Roma foi uma civilização da lei e da realização física, não de ideias especulativas e criatividade artística. A imposição de suas leis e a incansável ampliação de sua extraordinária infra-estrutura física exigia menos esforço intelectual que energia ilimitada e disciplina moral. ” – John Keegan em ”Uma História da Guerra”.

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Roma foi a matriz do mundo ocidental, sendo a síntese de todas as civilizações predominantes no Mediterrâneo que a precederam, era uma civilização aberta, receptiva a novas ideias, conceitos e valores, que ela acolhia e adaptava a sua maneira, ao mesmo tempo em que absorvia, era absorvida pela cultura dos povos conquistados, e talvez o maior exemplo desse fenômeno se deu na religião. Durante a República, devido aos intensos contatos comerciais e culturais com os gregos e os reinos helenísticos,  houve uma fusão entre o panteão local, latino, e o grego.

No Império, o culto a deuses estrangeiros como os egípcios Ísis e Hórus, a frígia Cibele, a efésia Ártemis e o persa Mitra, eram aceitos e bastante populares. Durante os primórdios do cristianismo, o imperador Tibério planejou inclui-lo na lista de religiões permitidas  – religio licita – pelo Estado, prova do caráter agregador e inclusivista romano.

Após a Segunda Guerra Púnica, Roma fez com que suas Legiões adotassem muitos dos métodos, estratégias e táticas empregadas por seu inimigo Aníbal Barca.

O que devemos ter em mente é o fato de que os antigos romanos conquistavam povos e nações não com o intuito de destruí-las, extingui-las, mas para inclui-las em seu mundo, o mundo romano, por isso, – apesar de momentos de crueldade e selvageria que eram uma exceção a regra, como o cerco e destruição de Cartago em 146 a.C. e a supressão da  Grande Revolta Judaica entre 66 e 73 A.D. – antes do início das guerras, eles sempre buscavam negociar a rendição dos inimigos, listando os benefícios da civilização, por isso a ideia de que fora das fronteiras de Roma, não existia mundo, só os bárbaros: o que não era romano, não existia.

Isso é a lgo que os valirianos também podem ter sentido em relação a Westeros, o que responde a indagação de Tyrion no quinto livro sobre as razões para a interrupção da expansão de Valíria rumo ao ocidente, em Pedra do Dragão. O que estava para lá das fronteiras valirianas, não existia, na sua visão de mundo.

Os valirianos também tinham facilidade em assimilar tradições, valores e conceitos dos povos conquistados e os adaptar a sua própria civilização, talvez o principal desses conceitos foi o sistema escravista, originalmente do Império Ghiscari. Depois da vitória valiriana, eles adotaram o escravismo como parte fundamental da estrutura de sua sociedade e além disso o empregaram em uma escala massiva, empregando milhares de escravos de diferentes etnias nas minas das Catorze Chamas. Essa facilidade na assimilação cultural e o poder de adaptação, como parte da herança valiriana, posteriormente contribuiu para a aceitação e consolidação dos Targaryen como dinastia em Westeros, também garantido devido a seus vários casamentos com famílias de origens não-valirianas – desde os Arryn e os Baratheon aos Martell -.

O sistema imperial romano também era a síntese de conceitos anteriores: o ideal de Alexandre, o Grande de unificar e combinar povos e culturas distintas e a organização burocrática do Império Aquemênida. Os antigos romanos viam o conquistador macedônio com admiração e fascínio, tal como o Ocidente vê Roma desde sua queda, tal como em seus dias Alexandre, o Grande via a Pérsia Aquemênida, um império vasto, altamente organizado, com língua, leis e moeda comuns, estradas ligando as cidades mais importantes – a Estrada Real Persa, que ligava Susa a Sardes, foi a precursora de estradas romanas como a Via Appia.

O ideal imperial alexandrino e a estrutura de governo aquemênida foram grandes influências para  Roma,  e tanto os Pais Fundadores dos EUA no séc. XVIII quanto os britânicos com a ascensão de seu império ultramarino no XIX buscaram inspiração na República Romana.

Há mais de quinze séculos Roma deixou de ser um império no Ocidente, mas desde sua queda muitos tentaram faze-lo renascer pelos mais variados motivos, desde Justiniano, Carlos Magno e Otto I na Idade Média até Napoleão, Mussolini e Hitler na Idade Contemporânea.

Em Essos e Westeros, a disputa pela herança imperial de Valíria não é tão intensa quanto foi na história ocidental pós-romana. Entre as Nove Cidades Livres reina um estado de guerra estática – onde não há nada de novo no front -sem vencedores nem vencidos -, com o status quo sendo preservado desde o fracasso de Volantis nos Anos Sangrentos, em Westeros, os mais improváveis – já que eram uma casa menor – herdeiros de Valíria foram depostos do poder e seu(s)  último(s) remanescente(s) dificilmente irão recupera-lo no futuro.

Sob muitos sentidos, a Roma Antiga e a Cidade Franca de Valíria foram o ápice da genialidade e do esforço humano, elas eram as expressões tanto dos aspectos positivos quanto negativos do homem, a violência, a crueldade e a barbárie estão lá, bem como a diplomacia, o conciliamento e a pacificação.

Existem padrões na história humana, guerras de grandes proporções geralmente precedem longos períodos de paz, o caos sempre precede o estabelecimento da ordem, Roma e Valíria, longe de terem sido meros monstros imperialistas, foram os maiores representantes desses padrões. Nos antigos romanos encontramos os fundamentos da nossa civilização, assim como boa parte dos povos e culturas do universo de ASOIAF encontram suas bases em Valíria.

Seus legados, o Império das Ideias, permanecem incólumes, isso atesta-se nos idiomas, na política, na arquitetura, na área militar, no Direito, na religião e etc, as ideias romanas está lá, como eternos memoriais do quão longe a humanidade pode chegar e, mesmo assim, cair… tal como Ícaro com suas asas caiu no mar e Faetonte em sua carruagem caiu do céus.

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